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INTERVENÇÃO DE MARIA EUGÉNIA NETO NA OUTORGA DA ORDEM AMÍLCAR CABRAL, 2º GRAU, EM CABO VERDE

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Excelência, Dr. José Maria das Neves
Presidente da República de Cabo Verde
Todas as Autoridades aqui presentes
Minhas senhoras e meus senhores,

É com elevada honra e alegria que regresso à cidade da Praia para, desta vez, receber a mais elevada distinção de Cabo Verde – a Ordem Amílcar Cabral.
Nem sempre é destacado o mérito das mulheres que, para além da nobre missão de perpetuar a espécie, educá-la e protegê-la, abraçam as causas e lutas pela emancipação dos povos, nas mais diversas vertentes.
Saúdo e agradeço o gesto do Presidente da República José Maria das Neves em atribuir esta distinção à companheira de Agostinho Neto pois demonstrou ser um líder com uma visão ampla da história e uma perspectiva clara do futuro. Esta distinção une os povos de Cabo Verde, Angola e Portugal.
Vivemos tempos surpreendentes onde há tentativas de reescrever a verdade histórica. Por isso mesmo, é relevante revisitar a minha vida, com toda a brevidade que esta cerimónia impõe.
Na década de 50 do século passado, conheci, em Lisboa, Agostinho Neto e outros estudantes das então colónias de Angola, Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Príncipe e Moçambique. Com eles comecei a lutar contra o fascismo.
A PIDE-DGS prendeu Agostinho Neto em 23 de Março de 1952 e em 9 de Fevereiro de 1955, em Portugal. Em 27 de Outubro de 1958, Agostinho Neto concluiu a sua licenciatura em medicina e casámo-nos nesse dia. Embarcamos para Angola em 22 de Dezembro de 1959 com o nosso filho recém-nascido, Mário Jorge.
Em Luanda, ajudei o meu esposo no seu consultório onde exercia medicina privada. Em simultâneo, Agostinho Neto, com outros camaradas do MINA, trabalhou para unir os angolanos para a luta contra o colonialismo. A PIDE prendeu-o no seu consultório em 8 de Junho de 1960 e foi deportado para a prisão de Aljube, em Portugal.
Mais tarde desterrado em Cabo Verde, foi nomeado Delegado de Saúde em Santo Antão onde trabalhou até regressar à Lisboa, preso, uma vez mais, em 27 de Setembro de 1961. De Lisboa fugimos de barco para Marrocos em Junho de 1962. Levamos os nossos dois filhos, o Mário Jorge e a Irene Alexandra, numa atribulada travessia do Estreito de Gilbratar, entre o mar Mediterrâneo e o Oceano Atlântico. A Irene nasceu em Lisboa mas foi concebida em Cabo Verde. Também é filha desta terra.
De Marrocos fui para Léopoldville e posteriormente para Brazzaville. Agostinho Neto passou a liderar o MPLA em 1962 depois de ter sido eleito presidente. A luta armada ganhou novo fôlego. Em 1967, abrimos a III (3ª) região Político-Militar e eu fui para a Tanzânia com os meus 3 filhos pois a Leda nasceu em 1964, em Brazzaville. Além de mãe e esposa, trabalhei em quase tudo para ajudar a luta de libertação.
As lutas armadas em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique contribuíram decisivamente para que os capitães do MFA fizessem o 25 de Abril de 1974. A Revolução dos Cravos encurtou o caminho para a independência das ex-colónias em África. O 25 de Abril também é nosso!
Angola perdeu o líder em 1979. Eu fiquei viúva mas continuei em Angola a educar os meus filhos. Sempre tive coragem na adversidade. Continuei a escrever poesia e contos para crianças e jovens.
Em 2007, lançamos a Fundação Dr. António Agostinho Neto para divulgar a obra do meu esposo. Implantamos o seu busto em Santo Antão, Ponta Negra, Caracas, Buenos Aires, Lusaka, Belgrado, Roma e brevemente, em Dar es Salaam. Constituímos cátedras universitárias na Itália, Portugal, Argentina e em Angola. Publicamos a obra poética em mandarim, hindi e coreano. Reeditamos igualmente em português, espanhol, francês, inglês. Está em curso a publicação em kimbundu, umbundu, cokwe, kikongo e italiano. Agostinho Neto é hoje um dos poetas mais traduzido de África e ainda bem porque a sua poesia é bela, fascinante e profunda. O centenário de Agostinho Neto contou com várias comemorações dentre as quais destacamos a celebração da efeméride na UNESCO, em Paris.
A minha vida foi, em resumo, uma luta pelo amor e pela liberdade. Lutei por amor a Agostinho Neto, aos meus filhos e a Angola. Lutei para libertar homens, mulheres e crianças.
Fui destemida e resiliente porque enfrentei o racismo em Portugal e em África e nunca desisti nem abandonei a luta. Era a branca com “alma de negro”, como dizia a PIDE-DGS. Era a branca casada com o líder guerrilheiro e fui a Primeira-Dama da República Popular de Angola.
A distinção que me fazem, partilho-a com a geração de Agostinho Neto, Amílcar Cabral, Marcelino dos Santos, Samora Machel e entrego-a aos meus filhos, netos e bisnetos para que continuem a lutar pela felicidade e bem-estar da humanidade.
Neste 48º aniversário da independência, sinto-me feliz por ver um Cabo Verde democrático, com autarquias activas. Continuem a educar a juventude porque o saber é uma riqueza renovável e perene. Estão no caminho certo!
Agradeço a vossa atenção e carinho.
Maria Eugénia Neto
Praia, Cabo Verde, 5 de Julho de 2023.

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