FAAN

A RENÚNCIA IMPOSSÍVEL

I – Negação

 

Não creio em mim.

Não existo.

Não quero eu não quero ser.

 

Quero destruir-me:

– atirar-me de pontes elevadas

e deixar-me despedaçar

sobre as pedras duras das calçadas.

 

Pulverizar o meu ser

desaparecer

não deixar sequer traço de passagem

pelo mundo.

 

Quero matar-me

e deixar que o não-eu

se aposse de mim.

 

Mais do que um simples suicídio

quero que esta minha morte

seja uma verdadeira novidade histórica

um desaparecimento total

até mesmo nos cérebros

daqueles que me odeiam

até mesmo no tempo

e se processe a História

e o mundo continue

como se eu nunca tivesse existido

como se nenhuma obra tivesse produzido

como se nada tivesse influenciado na vida

como se em vez de valor negativo

eu fosse Zero.

 

Quero ascender, subir

elevar-me até atingir o Zero

e desaparecer.

Deixai-me desaparecer!

 

Mas antes vou gritar

com toda a força dos meus pulmões

para que o mundo oiça:

 

– Fui eu quem renunciou à Vida!

Podeis continuar a ocupar o meu lugar

vós os que mo roubastes

 

Aí tendes mundo todo para vós

para mim, nada quero

nem riqueza nem pobreza

nem alegria nem tristeza

nem vida nem morte

nada.

 

Não sou. Não existo. Nunca fui.

Renuncio-me

Atingi o Zero

 

E agora,

Vivei, cantai, chorai

casai-vos, matai-vos, embriagai-vos

dai esmolas aos pobres.

Nada me pode interessar

que eu não sou

Atingi o Zero!

 

Não contem comigo

para vos servir às refeições

nem para cavar os diamantes

que vossas mulheres irão ostentar em salões

nem para cuidar das vossas plantações

de café e algodão

não contem com amas

para amamentar os vossos filhos sifilíticos

não contem com operários

de segunda categoria

para fazer o trabalho de que vos orgulhais

nem com soldados inconscientes

para gritar com o estômago vazio

vivas ao nosso trabalho de civilização

nem com lacaios

para vos tirarem os sapatos

de madrugada

quando regressardes de orgias nocturnas

nem com pretos medrosos

para vos oferecer vacas

e vender milho a tostão

nem com corpos de mulheres

para vos alimentar de prazeres

nos ócios da vossa abundância imoral.

 

Não contem comigo

Renuncio-me.

Eu atingi o Zero.

 

Não existo. Nunca existi.

Não quero vida nem morte

Nada!

 

Podeis agora queimar

os letreiros medrosos

que às portas de bares, hotéis e recintos públicos

gritam o vosso egoísmo

nas frases: “SÓ PARA BRANCOS” ou “ONLY TO COLOURED MEN”

Negros aqui .Brancos acolá.

 

Podeis acabar

com os miseráveis bairros de negros

que vos atrapalham a vaidade

Vivei satisfeitos sem “colour lines”

sem terdes que dizer aos fregueses negros

que os hotéis estão abarrotados

que não há mais mesas nos restaurantes.

Banhai-vos descansados

nas vossas praias e piscinas

que nunca houve negros no mundo

que sujassem as águas

ou os vossos nojentos preconceitos

com a sua escura presença.

 

podeis transformar em toureiros

ou em magarefes

os membros da Ku-klux-klan

para que matem a sua fome sanguinária

nas feridas dos touros que descem à arena.

Não há negros para linchar!

 

Porque hesitais agora?

Ao menos tendes oportunidade

para proclamardes democracias

com sinceridade

 

Podeis inventar uma nova História.

Inclusivamente podeis atribuir-vos a criação do mundo.

Tudo foi feito por vós

Ah!

que satisfação eu sinto

por ver-vos alegres no vosso orgulho

e loucos na vossa mania de superioridade.

 

Nunca houve negros!

A África foi construída só por vós

A América foi colonizada só por vós

A Europa não conhece civilizações africanas

Nunca um negros beijou uma branca

nem um negro foi linchado

nunca mataram pretos a golpes de cavalomarinho

para lhes possuírem as mulheres

nunca extorquiram propriedades a pretos

não tendes, nunca tivestes filhos com sangue negro

ó racistas de desbragada lubricidade

Fartai-vos agora dentro da moral.

 

Que satisfação

por não terdes que falsear os padrões morais

para salvaguardar

o prestígio, a superioridade e o estômago

de vossos filhos.

 

Ah!

 

O meu suicídio é uma novidade histórica

é um sádico prazer

de ver-vos bem instalados no vosso mundo

sem necessidade de jogos falsos.

Eu elevado até o Zero

eu transformado no Nada-histórico

Eu no início dos Tempos

eu-Nada a confundir-me com vós-Tudo

sou o verdadeiro Cristo da Humanidade!

 

Não há nas ruas de Luanda

Negros descalços e sujos

a pôr nódoas nas vossas falsidades de colonização

Em Lourenço Marques

em New-York, em Leopoldville

em Cape-Town

gritam pelas ruas

a foguetear alegria nos ares:

 

-Não há negros nas ruas!

Nunca houve.

Não há negros preguiçosos

a deixar os campos por cultivar

e renitentes à escravização

já não há negros para roubar.

Toda a riqueza representa agora o suor do rosto

e o suor do rosto é a poesia da vida.

 

 

Não existe música negra

Nunca houve batuques nas florestas do Congo

Quem falou em spirituals?

 

Vá de encher os salões

de Debussy Strauss, Korsakoff.

Já não há selvagens na terra.

Viva a civilização dos homens superiores

sem manchas negróides

a perturbar-lhe a estética!

 

 

Nunca houve descobrimentos

a África foi criada com o mundo.

 

O que é a colonização?

O que são massacres de negros?

O que são os esbulhos de popriedade?

Coisas que ninguém conhece.

 

 

A história está errada

Nunca houve escravatura

nunca houve domínio de minorias

orgulhosas da sua força

 

Acabai com as cruzadas religiosas

A fé está espalhada por todo mundo

sobre a terra só há cristãos

vós sois todos cristãos.

 

 

Não há infiéis por converter

Escusai de imaginar mais infidelidades religiosas

para justificar

Repugnantes actos de barbarismo.

 

Não necessitais enviar mais missionários

a África

nem aos bairros de negros

Nunca houve feitiços

nem concepções religiosas diferentes

nunca houve religiosos a auxiliar a ocupação militar.

 

Possuís tudo, tudo

e vós sois todos irmãos.

Podeis continuar com os vossos sistemas

socialistas ou capitalista

que isso não me interessa.

Explorai o proletariado

ou dai-lhe de comer

isso é convosco.

 

Continuai com os vossos sistemas políticos

ditaduras, democracias.

Matai-vos uns aos outros

lutai pela glória

lutai pelo poder

criai minorias fortes

que protejam os seus comp…

apadrinhai os afilhados dos vossos amigos

criai mais castas

aristocracias, plutocracias

aburguesai as ideias

e tudo sem a complicação

de verdes intrusos

imiscuir-se na vossa querida

e defendida civilização

dos homens privilegiados.

 

Homens-irmãos

dai-vos as mãos

gritai a vossa alegria de serdes sós

SÓS!

únicos habitantes da Terra.

 

Eu atingi o Zero!

 

Isto simplica extraordinariamente

a vossa ética.

Ao menos não percais agora

a ocasião de serdes honestos.

 

Se houver terramotos

calamidades, cheias ou epidemias

ou terras a defender da invasão das águas

ou motores parados nas lamas de selvas africanas

raios vos partam!

já não tereis de chamar-me

para acudir às vossas desgraças

para reparar os vossos desastres

ou para carregar com a culpa das vossas incúrias.

Ide para o diabo!

 

Eu não existo

Palavra de honra que nunca existi.

Atingi o Zero

o Nada.

Abençoada a Hora

do meu super-suicídio

para vós

homens que construís sistemas morais

para enquadrar imoralidades

 

O sol brilha só para vós

a lua reflecte luz só para vós

nunca houve esclavagistas

nem massacres

Nem ocupações da África.

 

Como até a História

se transforma num Tratado Moral

sem necessidade de arranjos apressados!

 

Não existem os pretos dos cais e do caminho de

ferro.

Nos locais de trabalho nunca se ouviram cantos

dolentes

só há chiadeira do guindastes.

Nunca pisaram os caminhos do mato

carregadores com quilos às costas

são os motores que se queimam sob as cargas

 

Ó pretos submissos, humildes ou tímidos

sem lugar nas cidades

ou nos escaninhos da honestidade

ou nos recantos da força

com a alma poisada no sinal menos,

polígamos declarados

dançarinos de batuques sensuais

sabei que subistes todos de valor

Atingistes o Zero

sois Nada

e salvastes o Homem.

 

 

Acabou-se o ódio de raças

e o trabalho de civilização

e a náusea de ver meninos negros

sentados na escola

ao lado dos meninos de olhos azuis

e as extorsões e as compulsões

e as palmatoadas e torturas

para obrigar inocentes a confessar crimes

e os medos de revolta

e as complicadas demarches políticas

para iludir as almas simples.

 

Acabaram-se as complicações sociais!

 

Atingi o Zero.

Cheguei à hora do início do mundo

E resolvi não existir.

Cheguei ao Zero-Espaço

ao Nada-tempo

ao Eu coincidente com vós-Tudo.

 

 

E o que é mais importante:

Salvei o mundo.

 

II – Afirmação

 

Ah!

Faça-se luz no meu espírito

LUZ!

 

Calem–se as frases loucas

Desta renúncia impossível.

 

Eu–todos nunca me negarei

nunca coincidirei com o nada

não me deitarei nunca debaixo dos comboios

 

Não fui eu quem falou

da salvação do mundo

à custa da minha existência

da transformação do valor negativo em Zero

por meio do castigo ao inocente

em super-suicídio novidade histórica

 

 

Quem falou não fui eu

foi a minha loucura.

 

O meu lugar está marcado

no campo da luta

para conquista da vida perdida

 

Eu sou. Existo

As minha mãos colocaram pedras

nos alicerces do mundo

Tenho direito ao meu pedaço de pão

 

Sou um valor positivo

da humanidade

e não abdico,

nunca abdicarei!

 

 

Seguirei com os homens livres

O meu caminho

para a liberdade e para a Vida.

 

Perdoem-me os cinco minutos de loucura

que vivi.

 

in “Renúncia Impossível”, Agostinho Neto, Obra Poética Completa, página 143

Do poema”Afirmação”, in Michel Laban , “Mário Pinto de Andrade – um intelectual na

política”. Da negação à Afirmação”,pp.87 – 99, Edições Colibri.

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