Não direi nada
nunca fiz nada contra a vossa pátria
mas vós apunhalastes a nossa
nunca conspirei nunca falei com amigos
nem com as estrelas nem com os deuses
nunca sonhei
durmo como pedra lançada ao poço
e sou estúpido com as carnificinas vingativas
nunca pensei estou inocente
não direi nada não sei nada
mesmo que me espanquem
não direi nada
mesmo que me ofereçam riquezas
não direi nada
mesmo que a palmatória me esborrache os dedos
não direi nada
mesmo que me ofereçam a liberdade
não direi nada mesmo que me apertem a mão
não direi nada mesmo que me ameacem de morte
Ah!
a morte
Morreu alguém no meu lar
No meu lar havia uma filhinha
estrela brilhante no céu da minha pobreza
ela morreu
Vejo a grinalda branca da sua inocência
arrastada nas águas sobre o seu corpo
Ofélia negra neste rio podre da escravatura
Ela morreu
e quem lhe fará o funeral?
e quem lhe pregará o caixão?
quem lhe fará a cova?
Quem lhe deitará terra sobre o leito eterno?
Enclausurado entre as quatro paredes
sem luz
sem ao menos ver a face morta da minha filha
sofro a angústia das trevas
Queimem-me antes
levem-me ao forno de cal
incinerem-me as vísceras e o cérebro
e estas mãos que nada podem fazer
contra as paredes
contra esta porta metálica
contra estes homens armados cheios de medo
contra a tortura
Assem-me no forno de cal
para acabar esta tortura das noites sem dormir
para o forno de cal
Nesta madrugada infernal
para o forno de cal
para o forno de cal
Quem enterrará a minha filha?
Os feiticeiros?
Já os ouço dançando na noite
e vejo os vermes da terra nédios de gorduras funerárias
trazendo os archotes do fogo que a consumirá
Para o forno de cal
acabar com esta tortura
a minha filha foi queimada no forno de cal
acabou-se para mim o sofrimento
o que dirão os meus irmãos os meus amigos
os que ouvis os gritos nesta tumba
o que direis dum pai que deixou queimar a filha
num forno de cal?
Lancem-me às chamas
Junto da minha filha do meu amor
da minha estrela pequenina
para o forno de cal
para abraçar a minha filha
para o forno de cal
Não direi nada
nem quero injecções nem calmantes
Ah! que sono
Para o forno de cal
Para o forno de cal…
Cadeia da PIDE de Luanda
Junho de 1960
in “Sagrada Esperança”, Agostinho Neto, Obra Poética Completa, página 100